domingo, 16 de agosto de 2009

Carlos acima de qualquer suspeita.

Ao terminar de ler a misteriosa e inesperada carta, Suzana notou que estava boquiaberta. “Como essa senhora ousa falar que estou correndo perigo? O que esta mulher sabe de minha vida? Mal consegue escrever meu nome! Homens lindos há em todo lugar, e além do mais, que mulher nunca teve dois homens em sua vida? Essa mulher, com esta conversa de ‘não sou charlatã, mas quero seu dinheiro’... onde pensa chegar? Acha mesmo que eu, Suzana Vecchio, acostumada a lidar com toda sorte de pessoas cairia nessa?”

Suzana tinha um bom emprego, um bom namorado, tinha amigos, ninguém lhe queria mal! Seria quase que traição imaginar que Carlos, seu querido namorado há quatro anos, fosse tramar sua destruição! Carlos era perfeito: 35 anos, alto, moreno, olhos de um verde muito vivo. Suzana nunca soube se essa vivacidade de seus olhos era conseqüência da cor ou de sua alma tão calorosa, tão vivaz. Carlos era advogado criativo e perspicaz, capaz de ler a Bíblia para o diabo e fazê-lo escutar. Com um sorriso saído de algum comercial de creme dental, vestia-se com elegância, caminhava com classe. Não raras foram as vezes que Suzana se perguntara “quando foi que ganhei este bilhete premiado?”, isso porque seu relacionamento com Carlos acontecera de uma forma tão natural que ela sequer se deu conta de quando havia começado. Lembra-se que o conhecera na faculdade, ele professor conceituado, ela aluna aplicada. Saíram algumas vezes e o fato de se verem quase todos os dias acabou por facilitar o relacionamento e o que Suzana, algum tempo depois, chamou de “a sorte grande”: seu ingresso no escritório Costa & Ribeiro. Ela era realmente uma mulher de sorte! Era inconcebível pensar que alguém, neste mundo perfeito em que Suzana vivia, poderia lhe causar qualquer dano. Era loucura! Carlos a amava, ela o amava, eram felizes!

Suzana tentava, de todas as formas, colocar seu cérebro analítico pra funcionar procurando convencer a si mesma a ignorar as linhas que acabara de ler. Mas havia a questão do gosto de rum... Como aquele gosto fora parar em sua boca naquela manhã? E pior! Como aquela senhora poderia saber daquele gosto que aparecera em sua boca pela manhã?

Subitamente Suzana sentiu como se as paredes começassem a girar, o mundo todo girava, girava... “eu espero que você não seja tola como a Amy” As cores e as formas começaram a se misturar: os quadros na parede, a porta, os móveis, sua estante... “um deles ou ambos querem sua destruição” Tudo começou a perder a nitidez, chão e teto se intercalavam. “Há um perigo eminente”. De repente tudo virou um imenso borrão cada vez mais escuro... “poderá vir à minha casa em princípios da semana que vem” Logo Suzana não ouviu mais nada, tudo escureceu de vez.

Logo Suzana se viu num imenso castelo, cheio de portas, escadas e vãos por onde ela não ousaria passar. Vultos entram e saem pelas passagens, mas Suzana caminha em linha reta na direção de uma imensa porta de madeira maciça, com vários desenhos e inscrições. Ela empurra a porta e lá dentro há várias pessoas que Suzana jamais vira em sua vida. Parecia uma festa: elas riam, cantavam, comiam. Algumas dançavam enquanto um belo rapaz portando um bandolim tocava lindas melodias. Muitas moças sorriam tentando chama-lhe a atenção, mas ele estava tão concentrado em suas canções que não via nada além das cordas de seu instrumento. Logo Suzana vê outro homem sentado à mesa com vestes muito ricas, ria alto e falava muito: parecia o anfitrião da festa. Suzana se aproxima e vê que aquele homem à mesa era Carlos! Ele lhe lança um olhar enigmático, ergue sua taça de bronze como quem faz um brinde e apenas sorri. Então ela sente um cheiro muito forte, abre os olhos e se vê rodeada de pessoas com Marta encostando um lenço molhado com qualquer coisa em seu nariz.

- Ela acordou! Está se sentindo bem, Dra?

- O que houve?

- Não sei. Fui até sua sala lhe passar os recados de ontem e a encontrei caída no chão. A Sra está com alguma dor?

Suzana não sabia se sentia qualquer dor. Ela não fazia idéia nem mesmo se possuía um corpo. Tudo estava muito confuso, mas ela se limitou a balançar a cabeça num sinal positivo. Logo chega Carlos correndo, assustado.

- Como você está, querida?

- Bem, eu acho...

- Vou levá-la pra casa. – E virando-se para Marta – Cuidarei dela agora.

Marta, a secretária mais antiga da empresa sorriu aliviada: Suzana estaria em boas mãos. Logo pensa: Carlos é um homem maravilhoso para os dias de hoje; é cavalheiro, simpático e sutil. E olhando para a frágil moça deitada no sofá completa seu pensamento: moça de sorte.

Suzana se levantou do sofá onde estava deitada com o auxílio de Carlos, e se deixou levar sem abrir a boca para contestar qualquer coisa que fosse. Nesse momento ele poderia levá-la para um abatedouro que ela iria pacificamente. Estava confusa, ainda um pouco tonta. O que ela vira? Desde o momento em que levantara naquela manhã, tudo parecia um sonho estranho e surreal aquela visão parecia apenas uma pequena parte daquele dia em que nada fazia sentido. Mas agora estava sendo levada por Carlos. Não conseguia ouvir nada do que ele falava, apenas via que gesticulava gentilmente, sorria e franzia a testa, um sinal muito característico de quando estava preocupado com algo. Fora tomada por uma onda de conforto, sentiu-se aquecida e envolta em uma névoa de perfume morno e doce. Agora tudo ficaria tudo bem, Carlos estava ali.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Miss Bella escreve uma carta

Enquanto entrava no seu escritório, uma carta aguardava por Suzana entre contas, propagandas e editais do mundo da advocacia. A citada carta, porém, era de uma espécie diferente: totalmente pessoal e inserida em um envelope amarelo do tipo antiquado. Sua autora tinha 85 anos e escrevia em uma letra pequena e feminina, ainda que carregada de intensa determinação:
"Minha cara Drª Suzana
Espero que minha carta a encontre bem e em boas disposições de saúde. Não sei como dizer isto, exceto de uma maneira: dizendo-o. Serei direta: sou Isabella Beckham, uma inglesa de nascimento. Resido há vários anos nesse país e tenho uma amiga que foi sua cliente há alguns anos. Depois disso eu vi sua foto algumas vezes nos jornais (você fica muito bem de vermelho, meu bem!). Ora é... é tão difícil dizer, eu... não sei como agiria se estivesse no meu lugar, senhorita Suzana! Eu me sinto odiosa, mas o fato é que tenho sido perturbada por vários sonhos com a sua pessoa. Veja você, nem nos conhecemos! Eu... minha boa doutora, eu já amassei e joguei no lixo três tentativas de cartas e dessa vez irei até o fim. Ora, faça-me o favor, tenho mais o que fazer, eu... Senhorita ou senhora Suzana, acontece que sou uma médium muito talentosa e reconhecida, tanto aqui como em St. Patrick Lake, minha cidadezinha natal. Sim, sei o que está pensando: uma charlatã. Uma detestável harpia em busca de dinheiro fácil, tentando impressionar a inteligente advogada com supostos pressentimentos. Pense! Na minha idade, explorar as pessoas seria meio esquisito; espero ansiosamente que concorde. O fato é que tenho sonhado com você. E sei que há algo terrível para acontecer com a senhora. Oh, perdoe-me! Perdoe-me, mas tenho tanta certeza disso como o de chamar-me Bella Beckham, e eu, honestamente, não sei mais o que fazer. Até pensei em conversar com o meu pastor, mas ele detesta minha relação com os espíritos e me acusa de espiritismo, veja que detestável - sou uma boa mulher protestante!
Na primeira sequência de sonhos (eu espero que você não seja tola como a Amy, de St. Patrick Lake, que não me ouviu e acabou tendo o corpo boiando no lago Summer Set!) você surge perfeitamente apaixonada por um homem lindo e maravilhoso - lindo e maravilhoso demais, eu diria! Ora, meu bem, não é que aparece outro homem no novo ciclo de sonhos? As imagens são extremamente confusas, mas algo é evidente: você irá conhecer ou já conhece dois (e não apenas um!)homens e um deles (ou, valha-me Jesus!) ambos querem sua destruição. Um deles não é o que parece ser, você entende, meu anjinho? Ah, como gostaria que me levasse a sério! Há um perigo eminente no ar, algo muito sombrio acontecerá com você e, sinceramente, você precisa ir à polícia! Mais uma coisa que os espíritos me informaram: o gosto súbito de rum faz algum sentido para você? Sim, estou me sentindo uma idiota, mas quando os espíritos dizem algo, eu não questiono. A experiência em ensinou que o melhor é acatar como uma boa menina.
Bem, eu preciso cuidar do jardim. Minhas gardênias precisam desesperadamente de serem regadas e há qualquer coisa esquisita com meu cacto de flor amarela. Você entende alguma coisa de botânica?
Se quiser falar comigo pessoalmente, poderá vir à minha casa em princípios da semana que vem para uma boa xícara de chá, enquanto conversamos sobre toda esta trapalhada. Tenho sido abominavelmente perseguida pelas mais funestas imagens de dor e destruição e - sem preâmbulos, meu anjo - todas dizem respeito a você. Por enquanto, só posso aconselhá-la a ficar o mais distante possível de qualquer par de calças que lhe apareça na frente, por mais "bonzinho" que ele lhe pareça. Agora, preciso ir.
Fique bem (espero!)
Atenciosamente
Miss Isabella Beckham"

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Um breve sinal

Uma idéia rubra dificilmente nasce conosco porque quando nascemos estamos envoltos naquela aura azulada que embala as canções de ninar e torna os pezinhos mais macios. E nunca surge na velhice, pois nessa época estamos em tons terrosos, geralmente clássicos demais; e muito menos na adolescência – as cores dessa época estão todas emaranhadas como numa alucinação psicodélica o que faz com que o calor de uma idéia rubra não encontre lugar para criar raízes, tudo tem um sabor fresco, forte e volátil... É como mascar chicle de menta, comer pizza de gorgonzola e beber coca-cola com curry, tudo ao mesmo tempo e dentro de uma bolha onde a temperatura varia constantemente.

Ela também não é algo que se construa, como aqueles sentimentos fortes e quase indestrutíveis capazes de formar famílias felizes ou pervertidos insanos. A idéia rubra surge assim do nada. Mas que fique bem claro: ao contrário do que a maioria possa pensar, ela não explode, mas sai por alguma frestinha quase imperceptível de algum lugar esquecido (ou cautelosamente trancado). Como uma fumacinha ela vai se esgueirando, aparecendo... E quando vemos está lá, inteira, rubra e vibrante como um pôr-do-sol caribenho. No momento em que isso acontece não há como ignorá-la, fingir que não vemos, ou até mesmo expulsá-la, idéias rubras são fortes, insistentes, suavemente tentadoras ou até mesmo avassaladoras. Elas podem durar dias, meses, anos, segundos... O tempo não é assim tão importante afinal, independente de sua duração, deixa marcas visíveis, profundas, deliciosamente quentes.

As idéias rubras têm o poder de nos surpreender. São como uma verdade jamais dita nem sequer imaginada, que aparece de repente aos nossos olhos, desvendando coisas que saltam de nós como faíscas alegres de uma fogueira. Ela ilumina tudo com aquele seu tom vermelho, nos envolvendo num ar de mistério tão sedutor que inevitavelmente nos entregamos, nos deixamos embalar... Elas podem ter um sabor picante, ou algo como cravo e canela. Há quem diga que sentiu sabor de morangos, outros de maçãs, outros ainda dizem que a idéia rubra tem sabor de hortelã com passas, o que não duvido, mas de qualquer forma uma idéia rubra sempre tem sabor, cheiro e textura das coisas que nos arrepiam, nos incendeiam, nos fascinam e hipnotizam. É como a voz da sereia, a chama de uma vela, uma idéia rubra nos faz ter desejos rubros, pensamentos rubros e enrubesce a face.

São sempre caprichosas e jamais aceitam um não. As idéias rubras são como crianças portando espadas, a quem um não pode causar as mais profundas dores e arrependimentos. Uma idéia rubra é capaz de rejuvenescer, de dar vida, de fazer cantar até mesmo os crocodilos! Mas não se engane! Uma única idéia rubra pode arrastar sua vida como lava quente, derretendo tudo o que você acreditava, sentia, agarrava-se como uma tábua de salvação. Uma única idéia rubra pode deixá-lo sem chão, sem paredes para se apoiar, e quando nada mais do que você era existir, a idéia rubra te recria, inventa uma nova combinação para seus acordes e toca em você uma nova melodia.

O perigo e o prazer moram, lado a lado, em cada centímetro de uma idéia rubra e tanto os desavisados quanto os precavidos são pegos de surpresa por ela, e quando se dão conta já estão bailando suavemente rodeados por esta bela borboleta. E com Suzana não poderia ser diferente...

Naquela manhã comum, tomava seu café que era como tantos outros que já bebera ao longo desses 3 anos que mora sozinha, acompanhado pelas mesmas torradas besuntadas com a mesma geléia de morango, Suzana estava pronta pra sair de casa. Trajava-se com sobriedade como pede a profissão: calça social bege, camisa marrom, um belo scarpin dois tons mais escuro que sua calça e sua bolsa no exato matiz do sapato. Brincos discretos, modos discretos, essa era Suzana Vecchi: advogada há três anos, sorriso de Mona Lisa, passos firmes, pernas longas, pescoço lânguido e olhos amendoados e de um castanho tão escuro que poderia ser confundido com negro. Levava uma vida normal, com uma rotina normal, tinha amigos normais e um namorado normalíssimo... Suzana era apenas mais uma no cardume de gente movendo-se pela cidade. Porém, nem por isso (ou seria correto dizer justamente por isso?) fora poupada de ser campo para uma idéia rubra.

Ao sair de casa, marchando para mais um dia no Costa & Ribeiro, o escritório que arrebanhava os melhores advogados da cidade, Suzana se sentia feliz por ser mais uma ovelha do velho Ivens Costa e seu sócio Felipe Ribeiro, os magnatas que comandavam o exército de advogados colecionadores de causas ganhas. Mas naquela manhã desde que saíra de seu apartamento ela sentia algo estranho, não sabia exatamente o que era. Talvez um cheiro, uma sensação... não, não era isso. Um gosto! Mas de quê? Certamente que não era do café nem das torradas com geléia... era um gosto mais forte, e ao pensar por alguns instantes decifrou: era rum. Mas há muito tempo não bebia rum, de onde viria este gosto de rum que ficava cada vez mais forte? Apesar de advogada inteligente, Suzana acostumara-se a ser ovelha, e ovelhas não indagam sobre coisas que não têm explicação, e acabou por deixar o gosto de rum de lado enquanto marchava ainda mais rápido para o escritório, nunca se atrasava. Ela mal sabia, que aquele gosto de rum era o começo de um terremoto.


(postado por Lia Lorenzi)

Introdução

Laura Richards é um personagem composto. Ela não é uma pessoa real. Trata-se do nome arranjado para representar Sydney Grassmann e Lia Lorenzi, dois amigos que não se conhecem pessoalmente, ele vivendo em Porto Alegre - RS, ela, em Curitibanos - SC. Decidimos, com base apenas no título sugerido por Lia, escrever uma história a dois. Não temos uma noção clara do que advirá a seguir, nem mesmo qual o tema de UMA IDEIA RUBRA. O texto surgirá apenas com base no que o autor do capítulo anterior escreve. Combinamos que um escreveria um capítulo e o outro daria prosseguimento, seguindo assim simultanemente, sem que um escreva dois capítulos seguidos sem a intervenção do parceiro de escritura. Creio que será divertido! Embora nada tenha sido verdadeiramente combinado, penso que ambos respeitaremos os estilos diferentes que nos compoem, bem como as tomadas de decisão acerca dos destinos dos personagens que irão surgir, bem como do enredo que despontará.
O que acontecerá em 'Ideia'? Não tenho noção! Sei apenas que um texto começa a ser inconscientemente elaborado, mais um hosana à criação. O ato de escrever sempre teve muita semelhança a um parto: toda a dor, toda a agonia e o subsequente emergir da nova vida. É assim também em literatura. Dessa vez, porém, temos um parto a dois, que pode traduzir uma menor ou maior gama de dor, dependendo de como o texto se desenvolve Não sabemos como será 'Ideia'! Não temos - não podemos ter - a mais remota noção do que o parceiro de literatura pretender fazer ou que rumo ele dará ao que já vai ser feito. Baseados apenas na confiança do estilo um do outro - e na aceitação da tomada de decisão do que foi feito no texto que nos precede - iremos tateando às escuras em busca do desenrolar da trama. E é assim que se compoe e se faz emergir "Uma Ideia Rubra.
Porto Alegre/Curitibanos, Sydney Grassmann/Lia Lorenzi